São algumas porções de um trabalho escolar em que eu tenho participação.
Fiz uma edição bem mais ou menos, há alguns problemas. Vou corrigindo.
Esse trabalho pretende analisar letras de músicas compostas pelo escritor Paulo Coelho – especialmente aquelas elaboradas em conjunto com Raul Seixas – ao mesmo tempo em que inserimos tais canções em um contexto histórico.
Cabe aqui, primeiramente, explicar a escolha do autor. Desde o princípio, pretendeu-se escolher um poeta-compositor, em coerência com a idéia de que hoje, como na Grécia antiga, a poesia sobrevive especialmente na música, seu maior meio de difusão, aliada à mídia em massa. Outro critério para a escolha foi a imparcialidade. Com o intuito de alcançar objetividade e racionalidade, os elaboradores desta pesquisa optaram por se distanciar de ícones (como o próprio Raul Seixas e Renato Russo, por exemplo) que, invariavelmente cercados de idolatria ou da aura de "lendas", poderiam, pelo envolvimento subjetivo, desfavorecer a análise e sua apreensão. Igualmente, tendo em vista os lançamentos editoriais atuais – “A Canção do Mago - A Trajetória Musical de Paulo Coelho”, por Hérica Marmo; “Ouvindo Estrelas”, por Marco Mazzola; e a vindoura “O Mago - A Extraordinária História de Paulo Coelho”, por Fernando Moraes –, que vêm a tratar de um ramo da cultura musical brasileira mais distante do foco padrão (Tropicália, Bossa Nova, etc.), pareceu aos elaboradores que surgiram condições propícias (fontes) para uma nova visita ao tema, com um olhar alternativo, devido à sua demonstrada atualidade.
Tal olhar de estranhamento dar-se-ia por meio da escolha de um autor pouco ou nada abordado pelos trabalhos produzidos à época e seria justificado pelo próprio contexto e momento histórico vivido. Afinal, se a contracultura, a qual será mais bem explanada na continuidade deste trabalho, visava ao questionamento de valores e mudança de paradigmas, e nos é apresentada a possibilidade de abordá-la em seu momento de destaque em nosso contexto histórico passado por meio de um indivíduo, se não contracultural, pelo menos contraditório para a intelectualidade nos tempos de hoje, por que não fazê-lo?
Nesses termos, a própria escolha do autor auxilia na configuração do clima de quase revisão, no sentido estrito de "re-olhar", daquele período, dando o toque contestador, que era o tom da época, ecoando oitavas menores, nos dias de hoje, quando se traz o nome de Paulo Coelho para os corredores da academia.
A parceria entre Paulo Coelho e Raul Seixas teve início, oficialmente, com o LP “Krig-Ha, Bandolo!”, lançado em 1973, do qual fazem parte músicas como “Al Capone” e “Cachorro Urubu”. Conforme se pretende esclarecer mais adiante, as letras compostas em parceria com Paulo Coelho formam um conjunto específico dentro da lista de músicas de Raul Seixas. Quase todas as músicas dessa parceria tratam de temas relativos à contracultura. O misticismo, religiões e sociedades alternativas e a cultura em massa são algumas das características e temáticas abordadas nessas músicas. Essa curta, porém frutífera, parceria rendeu ainda os álbuns “Gita” (1974) e “Novo Aeon” (1975), “Há dez mil anos atrás” (1976) e “Mata Virgem” (1978).
Paulo Coelho realizou várias outras composições musicais em conjunto e sozinho. No entanto, sua parceria com Raul Seixas foi literariamente mais significativa. Por isso, foram escolhidas para a análise poética duas das músicas mais famosas da dupla: a já citada “Al Capone” e “Gita”, do LP de mesmo nome. Ambas as músicas escolhidas inserem Paulo Coelho no contexto da contracultura, assim como serviriam para isso tantas outras.
CONTEXTO HISTÓRICO E CONTRACULTURA
UM OLHAR PÓS-MODERNO
Neo - Por que eu estou aqui?
O Arquiteto - Sua vida é a soma do saldo de uma equação desequilibrada inerente à programação da Matrix. Você é o desenlace de uma anomalia, que, a despeito de meus mais sinceros esforços, fui incapaz de eliminar daquela. Caso conseguisse, seria uma harmonia de precisão matemática. Ainda que continue a ser uma tarefa árdua diligentemente evita-la, ela não é inesperada, e portanto não está além de qualquer controle. Fato este que o trouxe, inexoravelmente, aqui.
[...]
O Arquiteto - [...] Como, sem dúvida, você está percebendo, a anomalia é sistêmica, criando flutuações até mesmo nas equações mais simples.
O Arquiteto - [...] Embora esta resposta funcionasse, ela era óbvia e fundamentalmente defeituosa, criando, assim, a anomalia sistêmica contraditória, a qual, sem vigilância, poderia ameaçar o próprio sistema. Por conseguinte, aqueles que recusavam o programa, ainda que uma minoria, se não vigiados, constituiriam uma probabilidade crescente de catástrofe. [1]
De modo simplório e didático, poderíamos entender a contracultura mediante este pequeno diálogo e conhecimento do filme Matrix. Um sistema vigente, eventualmente, acaba por gerar indivíduos ou culturas questionadoras e de natureza contrária à própria essência do sistema. Tais indivíduos, contraculturais, acabam por fazer algum estrago, mas o que na maioria dos casos ocorre é que, como no dilema das portas, enfrentado pela personagem Neo no filme, tal conteúdo contracultural acaba sendo absorvido pelo sistema (indumentárias hippies ou punks, por exemplo, passam a ser vendidas em lojas de shopping e a arte psicodélica passa a servir para propaganda de celulares), renovando-o, integrando-o e mantendo-o. Assim, o sistema passa a ser um resultado de soma entre o que em si ele era, mais a contracultura absorvida. No entanto, e é possível tentar identificar elementos como esses contemporaneamente, ou mesmo no passado, existem indivíduos ou culturas que optam por não “adentrar a porta de absorção”, e é esta uma das interpretações para a decisão da personagem no filme.
O QUE É CONTRACULTURA?
Retornando à base de pesquisa bibliográfica, tendo como principal fonte o ensaio “O Que é Contracultura?”, de Carlos Alberto M. Pereira, iniciaríamos com os precursores mais próximos da contracultura: a geração “beat”.
Focado quase que exclusivamente no movimento contracultural americano, Carlos Alberto se justificará apontando que, manifestamente atingindo o público jovem, tais atividades encontraram, nesse país, um público sem uma “longa tradição de luta política de esquerda bastante institucionalizada”[2], como era na Europa, propiciando uma diferenciação e uma amplitude maior para sua efetivação.
Igualmente, é destacado o papel das novas mídias de comunicação de massa que, ao mesmo tempo em que unificavam – e o conceito de “aldeia global” surge naquela época –, distribuíam e impunham padrões de comportamento, ideologia, valores e gostos, retiravam da família o papel de modelo de tais instâncias e deslocava o foco de revolta natural para a sociedade em geral: o Estabilishment, o sistema. A “sociedade tecnocrática” seria “a busca do ideal de um máximo de modernização, racionalização e planejamento, com privilégio dos aspectos técnico-racionais sobre os sociais e humanos”[3] numa tendência para a “burocratização da vida social” e com base nos dogmas científicos, ponto em que é gerada a figura do Especialista como intérprete oficial dos anseios de progresso, da tecnologia e da modernização. Citando um artigo de Paulo Coelho, Carlos Alberto traz um texto da época: “Todos os movimentos políticos tradicionais partiam do princípio de que a sociedade era a justificativa para a existência do homem. O hippismo inverteu o processo: o homem era a única justificativa para a existência da sociedade.”[4]
Assim, nos anos 50, uma geração de autores boêmios, os beatniks, teriam iniciado conceitos contestatórios de métodos muito distintos dos utilizados pela esquerda tradicional, por exemplo: “desengajamento em massa” e “inércia grupal”[5]. Desse grupo sairiam expoentes como Allen Ginsberg, autor do poema Howl, e que lançou o termo hipster, mais tarde abordado, por Norman Mailer, em um artigo determinado “negro branco”: “exatamente porque nesta sociedade os negros são aquele grupo que, por sua posição marginalizada, se vê obrigado a manter sempre uma atitude de rebelião,...”[6] Mailer diferenciaria ainda hipster de beatnik, destacando a passividade do último e a disposição e combatividade do primeiro.
Daí, de certa forma, hipster seria o legítimo antagonista de square, american way of life, da sociedade tecnocrática, uma vez tendo falhado a revolução proletária. E identifica-se com os movimentos de delinqüência juvenil, ou “juventude transviada”.
Na Europa, essa contestação e revolta iniciariam a Nova Esquerda, com novos paradigmas de funcionamento e base no indivíduo.. Na manifestação do Maio de 68 francês, na Sorbonne, ver-se-ia faixas com ditos de questionamento diferenciado da esquerda tradicional como: “é proibido proibir”, “o poder está nas ruas” e “imaginação no poder”, por exemplo.
O desenrolar disso seria acompanhado pela trilha de uma música que se difundia nas massas: o rock. E nomes como Beatles, Bob Dylan, Jimy Hendrix, Janis Joplin surgiriam trazendo para a música este aspecto moderno contestador que embalaria os acontecimentos mores de um novo movimento, corruptela de hipster, surgiriam os hippies.
Essa seria a oposição contracultural mais visceral, ante a tecnocracia: se a sociedade quer a tecnologia, os hippies valorizarão a simplicidade; se expoentes sociais são grandes centros urbanos, preferir-se-ia o campo; se a célula central é a família, viver-se-ia em comunidade; se a preferência é fast food, hambúrgueres e beef, prega-se e pratica-se o vegetarianismo; se o valor maior é o progresso da sociedade, opta-se pelo hedonismo primitivista; se a lógica racional é o processo de pensamento ideal, eles utilizarão a psicodelia e os estados alterados de consciência; se o discurso é científico, utiliza-se o transcedental; se as religiões são as tradicionais, resgata-se o mistiscismo pagão; e, se fazemos parte da grande civilização ocidental, far-se-ia peregrinações a cidades orientais ou exóticas (Katmandu e Marrakech, por exemplo, e conectando com uma música de Caetano Veloso) e estudar-se-ia e colocar-se-ia em prática valores e religiosidade oriental. E torna-se relativamente clara a escolha do nome para a época.
Na verdade, Contracultura, de acordo com Carlos Maciel, colaborador do Pasquim e autor de diversas obras sobre o tema, teria sido um termo criado pela imprensa americana para designar e estigmatizar os movimentos culturais ocorridos no mundo, principalmente Estados Unidos e Europa nos anos de 60 e 70. Ele ainda diria: “Contracultura é a cultura marginal, independente do reconhecimento oficial. No sentido universitário do termo é anticultura. Obedece a instintos desclassificados nos quadros acadêmicos.”[7]
Os grandes marcos de Contracultura seriam os festivais, essencialmente maiores três: Woodstock, Altamont e da ilha de Wight. Carlos Alberto destaca o sucesso do primeiro (em termos de representatividade dos valores esboçados acima) e o fracasso do segundo (onde haveria elementos ausentes em Woodstock, como o álcool e anfetaminas), que revelou a violência dentro da Contracultura e que acabou por gerar o que seria sua renovação: o Youth International Party, baseado na raiz beat, hipster, hippie, de oposição jovem versus não-jovem, os yippies seriam a progresão natural, passando a ter objetivo e influências políticas.
CONTRACULTURA NO BRASIL
Se a mídia de massa havia chegado aos Estados Unidos e Europa um tanto mais cedo, aqui ela popularizar-se-ia mais tarde e conjuntamente com a mudança na situação política do país.
A Ditadura Militar, vigente a partir de 1964, encarnaria a marca da representação da sociedade tecnocrática e, ao mesmo tempo em que buscava legitimar-se, assumia, com seus slogans ufanistas, de “milagre econômico”, “ninguém segura o Brasil” e “este é um país que vai pra frente”, uma postura análoga a das nações mais desenvolvidas, confundindo-se com o que seria, naquelas, o Estabilishment, o “sistema”, já mencionado. Teríamos, no entanto, aqui, o fundamental agravante da violência institucional, e a coerção do estado que resultaria em consideráveis particularidades nas formas de contestação assumidas, sejam na contracultura, sejam na luta da esquerda tradicional.
Assim, metaforicamente, o Vietnã brasileiro ocorreria em território nacional. Os opositores do “sistema”, da ditadura, seriam, então, os estudantes, os intelectuais e os artistas. E que teriam de burlar a censura estatal enquanto lutavam e tentavam fazer chegar suas mensagens de protesto e denúncia ao grande público.
Nesse sentido, vale destacar uma composição do autor em pauta e que retrataria bem esse panorama, no olhar contracultural:
SUPER-HERÓIS
Hoje é segunda-feira e decretamos feriado
Chamei Dom Paulo Coelho e saímos lado e lado
Lá na esquina da Augusta
Quando cruza com a Ouvidor
Não é que eu vi o Sílvio Santos
Sorrindo aquele riso franco e puro para um filme
de terror
Como é que eu posso ler se eu não consigo
concentrar minha atenção
Se o que me preocupa no banheiro, ou no trabalho
é a seleção
(Vê se tem Kung Fu aí em outra estação)
Já na outra esquina dei três vivas ao rei Faiçal
O povo confundiu pensando que era o carnaval
Então eu disse a Dom Paulete:
Eu conheço aquele ali
Não é possível, dom Raulzito
Quem que no Brasil não reconhece o grande
trunfo do xadrez
Saí pela tangente disfarçando uma possível
Estupidez
Corri para um cantinho pra dali sacar o lance de
Mansinho
(adivinha quem era? Mequinho!)
Lá em Nova York todo mundo é feliz
Vi o Marlon dançando o último tango de Paris
Pedi cerveja e convenci o garçom do botequim
A não pagar o tal do casco
Ele aceitou pois sou um astro
E duma cobertura no Leblon, Quelé acena dando aquela
Enquanto o povo embaixo grita:
"É o Rei Quelé despenca da janela"
É quando, a 120, o Fittipaldi passa e quem ele
atropela
(Meu Deus! Mequinho no chão, mais três velas)
Vamos dar viva aos grandes heróis
Vamos em frente, bravos cowboys
Avante! Avante!
Super-Heróis
Ai-oh Silver!
Shazan
Podemos verificar a conexão com o contracultural logo no primeiro verso, quando se destaca a disposição individual em excluir-se do “sistema”, “decretando” um “feriado” pessoal numa “segunda-feira”, diferenciando-se do status quo da necessidade do trabalho.
Logo depois, começam as referências a personalidades, figuras do pop nacional, bombardeadas pela mídia e às quais o estado se tentava vincular, com fins de oferecer uma alternativa dispersiva à massa, fugindo do foco das questões políticas e do regime no país. Assim, serão citados: Sílvio Santos, os filmes de Kung-fu, o carnaval (“o Brasil é o país do carnaval”), Mequinho (enxadrista brasileiro com destaque no exterior e que,
posteriormente, tornou-se, mesmo, funcionário estatal), Emerson Fittipaldi e Quelé (Pelé).
Os homens do governo, claro, trataram logo de aparecer em centenas de fotos ao lado dos craques.
“Além do futebol, os brasileiros conheceram uma nova paixão, o automobilismo. Até hoje, o mundo só teve um único piloto capaz de vencer na sua estréia na Fórmula 1: o nosso Émerson Fittipaldi, campeão mundial em 1972 e
1974.”
Fonte: www.cultura.org
Enxadrista Mequinho volta a ganhar título no exterior
“No início dos anos 70, ele dividia o Olimpo do esporte brasileiro com Pelé e Emerson Fittipaldi. No final daquela década, quase morreu, vítima de uma doença neuromuscular. Curou-se e, agora, retoma o caminho das conquistas que não conhecia há 30 anos. “[...] Mequinho recorreu ao passado para explicar sua nova fase. 'Nós, brasileiros, podemos ser campeões dos pés à cabeça', disse o enxadrista, se referindo à Copa do Mundo e repetindo uma frase que tornou-se célebre por ter sido dita pelo general-presidente Emílio Garrastazu Médici – que empregou Mequinho como assessor do governo no início dos anos 70."
Fonte: Folha Online
Esses seriam os “grandes heróis” do regime e do povo brasileiro, presença freqüente nos noticiários, e que são ironicamente louvados com “vivas”, enquanto passam por situações absurdas e patéticas, têm “riso franco para um filme de terror”, “despencam da janela”, “atropelam” e, eventualmente, “morrem” “no chão”. Tal mensagem de ironia é reforçada quando observamos os versos “Como é que eu posso ler se eu não consigo/ concentrar minha atenção / Se o que me preocupa no banheiro, ou no trabalho / é a seleção”, deixando relativamente clara a função dispersiva dos personagens aventados. Já uma referência à censura ocorre na dubiedade dos versos “lá em Nova York todo mundo é feliz / vi o Marlon dançando o último tango de Paris”, onde se pode inferir uma alienada louvação à cidade, mas também o fato de que o filme “Último Tango de Paris” estaria lá em exibição, enquanto, aqui, fora barrado pela censura.
Dessa forma, seria marcada a produção: valores contraculturais assumidos, em mensagens veladas que denunciam a ditadura, a sociedade tecnocrática, e a manipulação por ela efetuada, incentivando uma revolução, fosse a revolução tradicional socialista, da esquerda militante, fosse a individual, como o próprio Paulo Coelho revela, no prefácio a “Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor” (único livro publicado por Raul Seixas) e que resume, de certa forma, a experiência e o que eles viveram na época do regime ditatorial:
Esta idéia de transformar o mundo nos fez provar a todo momento que qualquer sonho era possível – [...] Fez com que reservássemos uma grande parte do dinheiro ganho com música para comprar um terreno [...], em que instalaríamos a ‘Sociedade Alternativa’ [...]. Mas mudar o mundo, numa época em que os donos do poder não davam qualquer satisfação de suas atitudes, fez da Sociedade Alternativa uma ameaça ao sistema vigente e acabamos nos cárceres do DOPS.
Ficamos muito assustados, mas a luta continuou. Fizemos mais dois discos (...) tentando estimular a revolução individual.[8]
Precedentes Contraculturais e Influências na Obra de Paulo Coelho/RaulSeixas
Tendo resumidamente abordado os pontos relevantes ao trabalho ora em andamento, entendemos que, para a compreensão da obra do autor em questão, devemos ainda mencionar outros aspectos não tratados por Carlos Alberto. Em “A Canção do Mago: A Trajetória Musical de Paulo Coelho”, de Hérica Marmo, conta-se com detalhes todos os passos e influências diretas sofridas pelo artista. Assim, para a análise mais completa das letras, passaremos brevemente por mais algumas referências ligadas à Contracultura, que, na verdade, teriam-na precedido.
Tanto Raul Seixas quanto Paulo Coelho deram destaque ao livro “O Despertar dos Mágicos: Introdução ao Realismo Fantástico” (Raul mencionava-o em entrevistas) e Hérica nos cita: “[Paulo Coelho] Ele foi então atrás dessa nova onda da contracultura, que embaralhava os valores convencionais e reverenciava o alternativo e o libertário. Encontrou identificação em livros como ‘O Despertar dos Mágicos’ [...] Como outros de sua geração, Paulo teve a publicação como um divisor de águas. Ficou fascinado com as histórias de alquimistas, magos e sociedades secretas.”[9]
Essa obra, anos antes do documentário “Quem Somos Nós”, trazia os questionamentos a respeito da realidade oriundos das descobertas da física, dava destaque aos trabalhos de sábios antigos (alquimistas como Fulcanelli), atividade de sociedades secretas, relembrava a possibilidade de civilizações extraterrenas (alguns anos antes do popular Erich Von Däniken), e fazia crítica à figura do “especialista”, buscando uma compreensão holística do mundo. Eles ainda recuperariam um trabalho que houvera sido de muita influência à sua época: “O Livro dos Danados”, de Charles Fort.
Este trabalho apareceu em Nova Iorque em 1919. Produziu uma verdadeira revolução nos meios intelectuais. Antes das primeiras manifestações do dadaísmo e do surrealismo, Charles Fort introduzia na Ciência aquilo que Tzara, Breton e os seus discípulos viriam a introduzir nas artes e na literatura: a terminante recusa de entrar num jogo em que todos fazem batota, a colérica afirmação de que "há mais qualquer coisa". Um enorme esforço, não talvez para entender o real na sua totalidade, mas para impedir que o real seja entendido de uma forma falsamente coerente. Uma ruptura essencial. "Sou um moscardo que perturba o cérebro do conhecimento para o impedir de dormir". [10]
Podemos inclusive ver, nessa última citação, embora de tom comum (Sócrates considerava-se “o moscardo de Atenas”), em que Charles Fort descreve-se, reflexo numa composição do LP Krig-Há, Bandolo (Mosca na Sopa - Raul Seixas):
[...]
Eu sou a mosca
Que perturba o seu sono
Eu sou a mosca
No seu quarto a zumbizar...
[...]
Igualmente, poderíamos ver uma aproximação entre trechos “Por outro lado, as técnicas, ao aperfeiçoarem-se, não se complicam: pelo contrário, simplificam-se.[...] No final, a chave das forças universais estará na nossa mão. Poderá ser fabricada e manejada por uma criança.”[11] e a música “As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor”, do LP Gita (Raul Seixas):
[...]
A civilização se tornou complicada
Que ficou tão frágil como um computador
Que se uma criança descobrir
O calcanhar de Aquiles
Com um só palito pára o motor
[...]
Ao mesmo tempo em que Charles Fort questionava os alicerces do conhecimento científico em Nova York, no início do século XX, com a sua coletânea de recortes de eventos noticiados em publicações científicas, mas nunca “explicados” satisfatoriamente (segundo ele), e criando um precedente do anti-intelectualismo, a ser agravado nos movimentos contraculturais, Aleister Crowley (1875-1948), místico inglês, considerado o “mago pop”, fundava a sua doutrina de Thélema, incorporando conceitos esotéricos, antes relegados apenas a sociedades secretas, o misticismo oriental, derivado de sua viagem ao Ceilão, onde permanecera 2 anos, a utilização ritualística de drogas e inaugurando suas duas máximas: “faze o que tu queres, há de ser tudo da Lei” e “o amor é a Lei”. Seria ele ainda a dizer, no começo do século, que a humanidade entrava no “novo aeon” de “aquarius-leo”. Além das claras referências a ele, que é, por exemplo, um dos personagens retratados na capa do LP Sgt. Peppers Lonely Hearts Club, dos Beatles, herdeiros de sua doutrina alegam sua influência sobre autores como Aldous Huxley e W. Sommerset Maugham além de contabilizar admiradores confessos como Rita Lee e Renato Russo.
Tal místico, cuja doutrina converge em diversos pontos citados da contracultura, em especial no culto ao “eu”, podendo ser mesmo interpretado pelo viés narcisista (“Catedral do Eu” foi o nome dado a um dos locais de reunião), seria citado e entraria ele mesmo nas composições do autor tema deste trabalho. Marcadamente, no elemento mais associado à obra de Paulo Coelho e Raul Seixas, e que hoje faz ainda parte do imaginário popular, na concepção de Sociedade Alternativa, vemos referências diretas e incorporação da doutrina “Crowleyniana” e valores contraculturais, do LP Gita:
SOCIEDADE ALTERNATIVA
Viva! Viva!
Viva A Sociedade Alternativa
[...]
(Viva O Novo Eon!)
[...]
Se eu quero e você quer
Tomar banho de chapéu
Ou esperar Papai Noel
Ou discutir Carlos Gardel
Então vá!
Faz o que tu queres
Pois é tudo
Da Lei! Da Lei!
[...]
"-Todo homem, toda mulher
É uma estrela"
[...]
"-O número 666
Chama-se Aleister Crowley"
[...]
"-A Lei de Thelema"
[...]
"-A Lei do forte
Essa é a nossa lei
E a alegria do mundo"
[...]
Assim, a influência de Aleister Crowley e dos valores contraculturais do contexto nacional da época são fundamentais para compreensão do trabalho de Paulo Coelho e Raul Seixas, no período abordado por este trabalho. Poderíamos demonstrar essa síntese – valendo ainda lembrar que tanto a Fundação de Krig-há quanto a Sociedade Alternativa tiveram uma existência além dos meros LPs, tratando-se de movimentos idealizados com projetos, manifestos e tomada de atitudes – por meio de uma das páginas do Gibi- Manifesto “A Fundação de Krig-há” (fig. 1).
Figura 1 - Gibi/Manifesto: A Fundação
de Krig-ha - COELHO, Paulo. SEIXAS,
Raul. Design de Adalgisa Rios.
Se o primeiro quadrinho nos remete a Allen Ginsberg e o primeiro verso do seu poema Howl, “Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura”, o segundo quadrinho nos remete diretamente à crítica do “sistema”, o terceiro, à manifestação da sociedade tecnocrática no Brasil, à ditadura, por meio de seus “carrascos”, e o último traz justamente o “foco de luz”, representado (por semelhança) pela figura do místico inglês, Aleister Crowley.
CONCLUSÃO
Toda uma geração acostumou-se a ver pelas ruas as franquias de yoga, a usar camisas de bandas de rock, organizar chiquérrimos motoclubes, vestir indumentárias indianas, almoçar em restaurantes vegetarianos, assistir nos noticiários à valorização de minorias, como as comunidades quilombolas, ouvir sobre direitos humanos, viajar como "mochileiros", comprar revistas especializadas em óvnis ou feitiçaria, comprar incenso em lojas de shopping, visitar lojas de produtos esotéricos, receber tratamentos de aromaterapia ou medicina ayurvédica e amanhecer na feirinha "hippie" do Largo da Ordem curitibano. Tudo isso absolutamente sem consciência da grande reviravolta ocorrida pouco mais de trinta anos antes. A figura do hippie atual está conectada aos desocupados que vendem artesanato ou erram por aí sem destino, maltrapilhos de raciocínio fraco ou alterado pelo excesso de drogas.
Como o personagem de Matrix teve a opção, a contracultura foi incorporada ao sistema e está presente em inúmeros aspectos sociais, ideológicos e mesmo na nossa vida particular, nossa postura e a noção de indivíduo. Inclusive encontrando pessoas que insistem em reviver o espírito daquela época, por exemplo, em festivais, como o Psicodália, ou fundando a cidade idealizada por Paulo Coelho e Raul Seixas (a Cidade das Estrelas é uma pousada que está localizada atualmente em São Tomé das Letras/MG).
Anualmente, na data de aniversário da morte de Raul Seixas, uma manifestação em São Paulo leva milhares (na última foram 4000, segundo a PM/SP) de pessoas às ruas, embaladas pelas músicas, conceitos e espírito que abordamos nesta pesquisa. Igualmente, Raul Seixas, juntamente com Roberto Carlos, é um dos cantores brasileiros que mais possui sósias, e essa fama de mito do rock, ou guru, valeu já mais de 28 publicações seja sobre ele, seja sobre a Sociedade Alternativa. No entanto, as poucas que mencionam Paulo Coelho, o fazem com olhar moderno, vendo-o como parte do "sistema", o vilão.
As recentíssimas publicações, no entanto, têm focado nos aspectos contraculturais e no contexto, retomando e recontando a história de um desconhecido Paulo Coelho hippie, de bastante relevância na produção de Raul Seixas e no panorama musical nacional, justamente agregando-lhe os valores contraculturais estudados e diferenciando-o da produção engajada. Essa mesma cultura ideológica (engajada de esquerda) ajudou a manter o desinteresse e o preconceito pelo estudo acadêmico dos movimentos "alienados" ou de orientação política pouco clara, ou mesmo, incerta. A permanência, no entanto, desses valores contraculturais e sua influência, que motivaram os trabalhos de referência para esta pesquisa, nos levam à conclusão de que tal visão estereotipada não é satisfatória. Como as manifestações artísticas engajadas, o movimento contracultural voltava suas farpas para a ditadura, atacava-a seriamente, estimulava a desobediência civil, a valorização do subversivo, que ficou bastante visível na música analisada, buscava a revolução individual, não apenas no conceito, mas pregando uma ideologia bastante oposta à sociedade tecnocrática, por um viés, contudo, anárquico.
[1] MATRIX Reloaded. Direção: Andy e Larry Wachowski. Produção: Joel Silver. Intérpretes: Keanu Reeves; Laurence Fishburne; Carrie-Anne Moss e outros. Roteiro: Andy e Larry Wachowski. EUA: Warner Bros, 2003. (138 min.). DVD, son., color.
[2] SANTOS, José Luiz dos; PEREIRA, Carlos Alberto M; FEIJÓ, Martin Cézar. O que é: Cultura; Contracultura; Política Cultural?. São Paulo: Círculo do Livro, p. 84
[3] Idem, p.78.
[4] Idem, p. 108 (Paulo Coelho Citado por Carlos Alberto).
[5] Idem, p.80.
[6] Idem, p.81.
[7] Citado por Carlos Alberto, na obra já mencionada, p. 69.
[8] SEIXAS, Raul. As Aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor. Rio de Janeiro: Shogun, 1992.
[9] MARMO, Hérica. A Canção do Mago: A Trajetória Musical de Paulo Coelho. São Paulo: Futuro
Comunicação, 2007, p. 24.
[10] BERGIER, Jacques. PAWELS, Louis. O Despertar dos Mágicos: Introdução ao Realismo Fantástico. São Paulo: Difel, 1974.
[11] Idem, p. 83.
2 comentários:
hey, quanto que a tia chongas deu para vcs nesse trabalho...
ou deveria dizer, para vc que outros levaram por escanteio??
10-2(atraso na entrega)=8
Não é um 10, propriamente, na minha opinião.
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