Pois num lampejo que eu me lembrei desse fato.
Uma conversentramigos que perdurou num silencio.
Eu pensando comigo, agora que eles foram embora... será que eu não tenho nada de interessante pra contar?
Eu apago tudo, lembro pouco de muita coisa que passou por aí e girou essa roda gasta.
E eu fui lembrar pelo menos disso, aí embaixo. Lembrei que eu tinha esquecido e tive de procurar nos emails mofados. Não mexi numa vírgula (só mudei a grafia da palavra D-eus, que, naquela época, eu ainda escrevia). Não lembro agora se ele foi escrito pouco antes do carnaval de 2004 ou 2005, mais provavelmente o último. Sei que descrevi o ocorrido sem mudar nem uma palavra, das ditas, nem um ato, sequer, dos personagens da vida real envolvidos. Acredite-me se quiser.
Lá vai:
Na passagem do holofote
-Oi, pode entrar! É meio apertado, mas pode entrar... cabe todo mundo...
...
-Moro só eu e o meu cachorrinho... Faz uns 6, 7 anos... Tem um outro que dorme aí... um porco imundo! Mas ele só vem de noite!
...
-Josemar Vieiro... Josemar Vieira dos Santos... eu já nem sei...
...
-É tá meio sujo... no início eu varria tudo... precisava de vê como isso ficou! Depois fui largando mão... Desanimei.
...
Era algo relativamente simples. Uma denúncia de que marginais desovavam ou armazenavam produto de furto num viaduto. Era possível que houvesse habitantes. Nosso papel então seria de cadastrá-los, verificar se eram alcólatras ou viciados, se estavam feridos e providenciar o encaminhamento. Quando se imagina um viaduto habitado, lembra-se de pequenos nichos onde se entulham cobertores ou papelões, ou de barraquinhas improvisadas com lixo. Mas o nosso viaduto estava mais para uma abertura de esgoto ao contrário: um orifício redondo no final da rampa de sustentação da rua por onde passavam os carros. O mocó era um espaço oco entre a pista lá em cima e o teto da pista de baixo. Aquele ânus redondo por onde entramos era a única saída.
Com a lanterna, fomos a duras penas criando um apertado facho de luz naquela escuridão que não se rompia, que se podia respirar com um cheiro de acúmulo de um ar que se negava a sair dali, sabe lá D-us há quanto tempo. Um ar que não era pra respirar.Nunca havia visto tanto lixo, uma verdadeira coletânea de marcas de cachaça barata da garrafa de prástico, papéis, latas usadas pra fazer fogo, um cinzeiro ao lado de um frigideira com teias de aranha, uma mala antiga, roupas de toda a espécie e, num canto, alguma pornografia...
Revistando o lugar, encontramos mais um orifício circular que dava passagem a uma outra câmara. Lá, um indivíduo amoitado em uma série interminável de cobertores. Fizemos um rol de perguntas ao Josemar Vieiro Vieira do Santo que tinha esquecido, de 35, 36 anos que lá residia havia 6, 7 anos com seu cachorrinho que não tinha nome... A pilha de garrafas ao lado da cama do cidadão era a maior de todas, junto a ela uma vela.
-Você está doente?
-Não, eu tou bem...
-Que que você faz pra viver?
-Eu saio de manhã e peço comida...
-E essa vela aí?
-Ah, eu pego elas no cemitério...
-Que que são essas garrafas aí?
-Isso aí é tudo mijo, que as vezes eu tenho preguiça de sair! O porco imundo joga tudo pelo buraco ali fora... Eu ia dar um jeito nelas, mas desanimei.
Voltamos com o chefe do Serviço Social da região e mais uma comitiva desejosa de ver a câmara do Tutancamon dos excluídos do Boqueirão, mas eles nem pra colocar a cabeça pra dentro do buraco. Tivemos nós de entrar de novo pra chamar o cidadão, mas ele estava dando um passeio.Lembrei-me de Cem Anos de Solidão e do quarto dos penicos. Mas o que o mero policial sabe de Garcia Marquez? O mero policial faria era acompanhar as saúvas do Serviço Social na Quarta-Feira de Cinzas de manhã (afinal, o vagabundo estaria bêbado e, com certeza, ali, dormindo) para derrubar a casa dos 6, 7 anos de solidão.
Uma conversentramigos que perdurou num silencio.
Eu pensando comigo, agora que eles foram embora... será que eu não tenho nada de interessante pra contar?
Eu apago tudo, lembro pouco de muita coisa que passou por aí e girou essa roda gasta.
E eu fui lembrar pelo menos disso, aí embaixo. Lembrei que eu tinha esquecido e tive de procurar nos emails mofados. Não mexi numa vírgula (só mudei a grafia da palavra D-eus, que, naquela época, eu ainda escrevia). Não lembro agora se ele foi escrito pouco antes do carnaval de 2004 ou 2005, mais provavelmente o último. Sei que descrevi o ocorrido sem mudar nem uma palavra, das ditas, nem um ato, sequer, dos personagens da vida real envolvidos. Acredite-me se quiser.
Lá vai:
Na passagem do holofote
-Oi, pode entrar! É meio apertado, mas pode entrar... cabe todo mundo...
...
-Moro só eu e o meu cachorrinho... Faz uns 6, 7 anos... Tem um outro que dorme aí... um porco imundo! Mas ele só vem de noite!
...
-Josemar Vieiro... Josemar Vieira dos Santos... eu já nem sei...
...
-É tá meio sujo... no início eu varria tudo... precisava de vê como isso ficou! Depois fui largando mão... Desanimei.
...
Era algo relativamente simples. Uma denúncia de que marginais desovavam ou armazenavam produto de furto num viaduto. Era possível que houvesse habitantes. Nosso papel então seria de cadastrá-los, verificar se eram alcólatras ou viciados, se estavam feridos e providenciar o encaminhamento. Quando se imagina um viaduto habitado, lembra-se de pequenos nichos onde se entulham cobertores ou papelões, ou de barraquinhas improvisadas com lixo. Mas o nosso viaduto estava mais para uma abertura de esgoto ao contrário: um orifício redondo no final da rampa de sustentação da rua por onde passavam os carros. O mocó era um espaço oco entre a pista lá em cima e o teto da pista de baixo. Aquele ânus redondo por onde entramos era a única saída.
Com a lanterna, fomos a duras penas criando um apertado facho de luz naquela escuridão que não se rompia, que se podia respirar com um cheiro de acúmulo de um ar que se negava a sair dali, sabe lá D-us há quanto tempo. Um ar que não era pra respirar.Nunca havia visto tanto lixo, uma verdadeira coletânea de marcas de cachaça barata da garrafa de prástico, papéis, latas usadas pra fazer fogo, um cinzeiro ao lado de um frigideira com teias de aranha, uma mala antiga, roupas de toda a espécie e, num canto, alguma pornografia...
Revistando o lugar, encontramos mais um orifício circular que dava passagem a uma outra câmara. Lá, um indivíduo amoitado em uma série interminável de cobertores. Fizemos um rol de perguntas ao Josemar Vieiro Vieira do Santo que tinha esquecido, de 35, 36 anos que lá residia havia 6, 7 anos com seu cachorrinho que não tinha nome... A pilha de garrafas ao lado da cama do cidadão era a maior de todas, junto a ela uma vela.
-Você está doente?
-Não, eu tou bem...
-Que que você faz pra viver?
-Eu saio de manhã e peço comida...
-E essa vela aí?
-Ah, eu pego elas no cemitério...
-Que que são essas garrafas aí?
-Isso aí é tudo mijo, que as vezes eu tenho preguiça de sair! O porco imundo joga tudo pelo buraco ali fora... Eu ia dar um jeito nelas, mas desanimei.
Voltamos com o chefe do Serviço Social da região e mais uma comitiva desejosa de ver a câmara do Tutancamon dos excluídos do Boqueirão, mas eles nem pra colocar a cabeça pra dentro do buraco. Tivemos nós de entrar de novo pra chamar o cidadão, mas ele estava dando um passeio.Lembrei-me de Cem Anos de Solidão e do quarto dos penicos. Mas o que o mero policial sabe de Garcia Marquez? O mero policial faria era acompanhar as saúvas do Serviço Social na Quarta-Feira de Cinzas de manhã (afinal, o vagabundo estaria bêbado e, com certeza, ali, dormindo) para derrubar a casa dos 6, 7 anos de solidão.
Um comentário:
Everything is average nowadays.
Todos tem vidas interessantes. Até um certo limite, claro.
-Fui velejador...
- Que legal! - e pensa: tanta gente com tantos problemas maiores por aí / tanta gente com vidas tão mais interessantes por aí.
Os diálogos se passam como você-não-é-ninguém-eu-também-e-não-quebre-o-acordo.
Nada choca. Nada é importante. Todos nadam no mar dos fracassados. Sem praia pra chegar, ninguém está na frente.
Todos lutam pelas suas vidas. Um permanente "estado de necessidade". Somos tudo igual, ninguém é mais, mas, eu primeiro (Minhas experiência primeiro, não há comparações).
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